Há toda uma escala de assobios, um tom para cada tipo de gado. Do labor ao assédio vai uma nota fora de tom, ensinava o pastor a Beethoven, que se fazia de surdo, pois na morte recuperara a audição, ambos numa tasca entre o Céu e o Inferno lá para os lados onde a arte perdeu as botas.
E ali, entre garrafas atulhadas de barcos que ingressaram na prisão seduzidos pela ideia de mensagem e sinfonias de espantar pardais, conversavam sobre a decomposição dos sentidos, sobre como a memória outrora musa é um invento de bêbado, uma maquete de cera numa tarde quente, simulando pobremente a arte de Salvador Dalí. Beethoven, já sem a pressão da posteridade, confessava: preferia o silêncio aos aplausos, aí mortos e vivos falam no mesmo idioma. O pastor sorria, faltavam-lhe os dentes da frente e o abismo no fundo, mas ainda sabia a diferença entre um rebanho e uma plateia.
O compositor soltou uma procissão de caralhadas, perdoem-me a síntese tasqueira, rendera-se, finalmente, ao valor terapêutico de certos vocábulos portugueses.
Tão bela, a cacofonia da raiva, comentava com os seus botões fictícios, qual fado que se enrosca no cu de Deus e não pede desculpa. A língua portuguesa foi feita para maldizer e amar, nunca para ficar neutra entre o vinho e a vírgula, nunca será, calculo, uma respiração sem vector.
A flora, nem me digam nada, a fauna, que horror, bichos pequenos, minúsculos como alfinetes que os organizam na cortiça, não me entram em casa, tal declaração ofende os insectos, embora estes careçam de estudos para adentrar na frase do rico.
São os insetos os novos proletários, bem como o escaravelho-bosteiro simultaneamente o trabalhador precário e o sísifo, em suma, o personagem que se agarrou à deixa ‘a vida é sempre a mesma merda’, os que limpam o chão da festa descalços, descobrindo, entre gritos e sangue, graças aos cacos e aos cardos, a sua inaptidão para faquir. Pulgas sem circo nem pão, abelhas problematizando o mel, formigas entronizando falsas rainhas. Vivemos num mundo que oferece menos dignidade ao besouro do que ao banqueiro. O insecto tem honra, vive do pouco ou canta que se farta, ambos os caminhos são empolgantes. Já o homem, ao morrer, quer coroa, missa e discurso de viúva, uma ilha de lágrimas posta por extenso. Simula ano sim, ano não a sua morte de molde a inventariar as viúvas.
Afinal o que sabe esta malta quitinosa que anda à cata de grãos de açúcar ou de bolinhas de esterco — haverá distinção entre as duas escolas? — como os homens da salvação? Mais um besouro de patas para o ar.
E há algo de profundamente bíblico nisso: homens a rastejar por doçura, como formigas cegas no altar da promessa. Viciados no grão a grão. Todos a morrer por migalhas, excepto os reis e os dragões. E no fim: "O que aprendi com a capotagem de um besouro?"
O que importa é animar a malta. Eis a frase apócrifa que Deus terá dito após ter bombardeado Sodoma e Gomorra com a sua cólera. Poderia tê-los salvo, mas salvar é para os fracos. Deus não quer crentes, quer plateia. Que se dinamitem os pecadores, mas com efeitos especiais. Não há necessidade de encher o ar de histórias carunchosas, o pescoço não deixará de se embeiçar pela lâmina, os tempos de Xerazade já lá vão.
Ela, pobre Xerazade, contava histórias para adiar a morte. Nós contamos piadas para fingir que estamos vivos, entrementes ludibriamos aspirantes a abutres. E quando já não temos histórias, repetimos slogans, mantras de autoajuda, posts partilhados como quem invoca o Santo Google contra os demónios da existência. Não são histórias que faltam, é coragem para ouvir o fim.
Ponderou como pôde se havia ou não de meter o bedelho na sarrafusca; acabada a festa, era tempo de posficiá-la com gritos e pontapés, talvez assim a memória fizesse o seu trabalho.
A memória, essa meretriz volúvel de anca parideira de eco, só se excita com pancadaria ou tragédia.
Havias de querer entrar na História com as mãos nos bolsos, comentou o Diabo.
E quem não quer? Entrar na História sem se sujar, como quem visita um bordel só para pedir um copo de água. Mas o Diabo, esse sim, conhecia os bastidores do enredo. Sussurrava aos ouvidos dos protagonistas enquanto lhes roubava os sapatos. Na História, os heróis não têm pés — só pose. Tudo o resto é amputado pela narrativa. Ah, heróis de rodapé.
Noutros tempos, ensacaríamos o século numa definição breve e catita, um epíteto que pudéssemos exibir nas noites mais longas, mais despovoadas de decotes, uma espécie de medalha larapiada ao inferno.
Hoje em dia, o século escapa a qualquer frase. É um peixe gordo a escorregar entre dedos tremelicantes. Tentaram chamar-lhe pós-verdade, pós-humano, pós-tudo (troque-se então o filho por pós-pai) — mas “pós” é só a maneira académica de dizer “não sei que merda está a acontecer”. E nós, parvos, ainda a tentar pôr-lhe nome.
Em faltando temas no mundo, o poeta observa outro poeta com o fito de lhe arrancar o coração e pô-lo na folha.
Por ora, canibalismo literário. O poeta a esventrar-se com a caneta qual samurai sem discípulos. Já não há inspiração, só reciclagem de traumas. Toda a gente escreve sobre a avó, sobre a infância suburbana, sobre amores líquidos e orgasmos de segunda, camisas abertas até à braguilha numa prosa de enfadar montanhas. O coração, de tanto ser arrancado, já se transformou em emoji.
Noutros tempos, tal acção reputá-lo-ia de avariado dos cornos, todavia, vivemos numa época em que a loucura é um campeonato lotadíssimo de talento.
A sanidade é um luxo dos sem imaginação. Os verdadeiros génios têm espasmos, tremores, surtos agudos de lucidez. Os manicómios são os novos salões literários — só que com menos vinho e mais eletrochoques. Cada geração elege a sua forma preferida de insanidade: a nossa escolheu o burnout entronizado pelo grito — perdão— berro burguês.
Não é fácil um louco destacar-se num hospício em expansão.
Eis o drama. Antes, um maluco era notícia. Hoje, é algoritmo. Cada um com a sua loucura personalizada e personalizável, entregue via push notification às oito da manhã. Estamos tão ocupados a fazer reels da nossa psicose que nem notamos o colapso iminente. A originalidade morreu de overdose. O cadáver de Deus deu lugar a um hostel.
O que vai para aqui de verborreia e de pinotes, pensará o leitor; cabrão, ripostará o escritor, não me interpretes assim, não te conheço de lado nenhum.
E se te conhecesse, pior ainda. Teria de fingir que me importo com a tua opinião, com as tuas metáforas anémicas, com os teus poemas em verso livre cheios de dor de cotovelo, essa gangrena biográfica cheio de ressentimento de pechisbeque. Ou a civilização ou o prazer, como escreveu Freud em O Mal-Estar Na Civilização. Eu escrevo contra ti, leitor idealizado, contra o teu bom gosto, contra a tua gramática emocional, contra o refrão do teu umbigo. Se chegaste até aqui, já és cúmplice.
Não sou como as tuas putinhas mansas que lês na net, todas afagos e músicas de embalar egos mais irritadiços.
Na folga do cão, o moço, aprendiz de pastor, dispersava o gado com gritos para poupar no chumbo. Até ver, não se afigura mau negócio.
Aprendera com o avô que voz bem lançada vale por três balas e que o grito é o idioma mais antigo do mundo, anterior à palavra, à escrita, à intenção. O grito, seja ou não lindíssimo, é puro — não mente, não floreia. Os animais respeitam o grito porque nele reconhecem o desespero. O silêncio, por outro lado, deixa-os inquietos. O silêncio é coisa de predador e de mimo.
Eu sou o cornaca da minha vida, bradava o vate ao hindu que ria porque não percebia português.
Mas o hindu, mesmo sem entender a língua, intuía-lhe a arrogância. Há frases que transpiram colonialismo até no som. O vate achava-se montador de elefantes existenciais, outrora dançado numa sala pejada de cristais.
Para mim, o sexo deve ser como um bom livro, dizia alguém cujo nome não importa frisar, deve apressar-se para chegar ao inferno, entrar logo sem prosa manca; nada de arrebiques de quem está bem na vida. Na cama o privilégio é um empata-fodas.
Nenhum prefácio, nada de introduções tímidas ou notas do autor. O sexo, para valer, deve rebentar logo à terceira palavra, como aqueles romances que não te deixam respirar. Nada de frases feitas, poses decoradas ou lubrificantes poéticos. Sexo como obra de urgência: uma guerra que ninguém quer ganhar, mas que todos querem prolongar.
Chamem-me Ismael ou filho da puta, não vim ao mundo para ser educador de infância de umbigos, mas sim para pegar no legado inconcluído (belo mamarracho linguístico) de Tifeu e coleccionar cabeças de deuses. Inicia-se o segundo round da gigantomaquia.
O ego é um museu mal iluminado, e o narrador já pendurara ali Apolo, Shiva, um Buda obeso e três santos padroeiros de causas sem resolução. Um rosário de cabeças. Há quem coleccione selos, moedas, memórias. Ele coleccionava blasfémias, como quem constrói uma escada para o abismo.
Ignoro se a terra é plana nas costas curvas de um paquiderme, o qual repousa em cima de uma tartaruga que por sua vez repousa no centro da rosa — e tudo isso na cabeça de um só homem.
Há verdades que só fazem sentido depois de três copos de absinto e um bom par de mamas rente ao nariz, só assim sou Um, Ninguém e Cem Mil em simultâneo.
A ciência, coitada, perdeu o monopólio da explicação. Agora tudo se sustenta em memes, astrologia e cogumelos que tocam à campainha das portas da percepção.
Daqui para a infância só há caminhos de cabras, é impossível regressar a essas províncias bem montado.
Na infância andávamos descalços e ninguém tinha medo de feridas. Hoje vestimos armaduras com cheiro a amaciador, a fim de tapar mamilos, expressões e minúsculo enfunado. Cada passo para trás é sabotado pela nostalgia, essa vadia embriagada que nos vende postais do passado a preço de ouro. Não há retorno possível, o rio já havia mudado de nome e de peixes.
O que é o Homem afinal? Isso é fácil: uma espécie de Himalaias povoados por animais espantadiços, sentimentos que raramente se deixam ver, feras que jamais se deixarão fotografar. E, como os Himalaias, o Homem também é vítima do turismo emocional. Querem escalar-nos com slogans de autoajuda, com selfies no pico da empatia, ignorando que o cume é intermitente. Mas lá dentro, nas cavernas frias da carne, ainda moram monstros não domesticados. Há urros no fígado, tempestades na medula, fósseis de desejos que nunca chegaram a nascer.
...templos esvaziados pelas neves, estradas intransitáveis reabertas pelo calor, cidades e labirintos fossilizados de supetão por uma grande erupção.
Não há mapa fiável para a geografia da alma. O Google não te leva aos lugares onde a dor residiu. Quem te guia nessas viagens são os delírios febris — o tal exército de febres de Horácio —, as músicas mal gravadas da adolescência para ninguém, os cheiros que voltam como ladrões de madrugada e de pontapeiam de volta ao ponto de partida. São esses os caminhos secretos, o subterrâneo do dédalo, ignorado pelo Minotauro. E são todos intransitáveis.
Belo naco de prosa, porém importa reter o seguinte: não dêem dinheiro aos monges budistas ou hinduístas, eles escavacam tudo em comida para percas, atafulham o Rio Ganges de farnel.
E depois chamam a isso oferenda. Espiritualidade gourmet. A iluminação parece uma dieta com muito arroz e zero perguntas. Os peixes nadam na abundância dos crentes e os pobres continuam com fome. E depois vêm dizer que a vida é uma ilusão.
...porra, assim é fácil ser peixe, diz um pombo invejoso da fartura de migalhas.
O pombo, esse filósofo urbano, sobrevive com menos fé mas mais esperteza. Não acredita em karma, acredita em crianças distraídas com torradas. O pombo, pelo menos, não polui os rios com espiritualidade reciclada. Caga nas estátuas com imparcialidade divina. O iconoclasta que compõe a sua monumental obra sem alardear a proeza — uma inspiração.
Neste mundo pós-pimba, não há uma alminha capaz de nos ensinar seja o que for.
Todos se demitiram da função de mestre, e os poucos que ainda se mantêm insistem em palestras sobre produtividade, os coreógrafos da empatia, e respiração consciente enquanto a casa arde. Já não há sábios, há influencers de chakras, gurus de pólen e autores de manuais com títulos como “Desperta o Teu Animal Interior com Batidos de Aveia”. Ensinar virou um serviço de streaming — pagas, assistes, esqueces.
Cercam bibelôs de andaimes e chamam a isso arte contemporânea.
A arte hoje parece feita por estagiários do absurdo: fita-cola numa melancia, retretes iluminadas a néon, gritos gravados em frascos de iogurte. Tudo documentado em alta resolução, para que o vazio seja visível com nitidez, de molde a que ninguém diga que a interpretação não tem espaço para se espreguiçar sobre a imagem. O problema não é a provocação — é a ausência de fome. Os novos artistas carecem de sede de mundo, só sede de holofotes; não passam de mosquitos à paisana.
Meu querido Duchamp, se fosses para o caralho ganhavas mais.
Não tinhas de fingir que uma sanita era transcendência. Tinhas era que dizer logo: "estou farto de gente que precisa de justificações académicas para mijar". Duchamp inventou o ready-made e desde então ninguém mais lavou as mãos nos museus. E cá estamos: um urinol numa galeria, rodeado de intelectuais a discutir legendas que podiam fazer as vezes do urinol na WC entre outras tangas visuais. Ai, Duchamp, se soubesses no que te transformaram, voltavas à vida de travesti e esquecias a subversão de museu.
Recordo-me dos tempos em que houve uma cruzada antimasturbatória, composta por médicos e padres, em que a punheta e a guitarrada de clitóris eram a raiz de todos os males.
A genitália era tratada como armamento biológico — se tocasses, explodias em cegueira ou poesia mal escrita. Masturbar-se era um acto de terrorismo interno, uma sabotagem da alma. Tudo para evitar o grande cataclismo: o orgasmo sem testemunhas. Eis que se inventou a pornografia.
Não sabemos dar valor ao nosso século, espancar o maroto despreocupadamente é das grandes conquistas civilizacionais. Tanta luta pelos direitos civis, pelo voto, pelo fim da escravidão, e esquecem que o direito à masturbação sem culpa foi um salto quântico na história da liberdade. Sucintamente, o homem moderno é um animal solitário com wi-fi e lubrificante.
O activista da sarapitola, engolido pelo tempo, merece todo o meu respeito.
Que fique registado: esse herói anónimo, que enfrentou a culpa cristã, os castigos médicos e os mitos da cegueira, foi precursor do prazer consciente. Sem ele, não haveria vibradores nem vídeos de autor badalhocos. Sem ele, o século XXI seria só LinkedIn e indignação.
Tempos houve em que bastava a criança levar a mão ao sexo para ser motivo de a banirmos de casa. E o corpo infantil, essa bomba-relógio hormonal, era tratado como território hostil. A mãozinha marota era capturada como se roubasse o pão da santa ceia. Havia rezas para afastar o demónio do prepúcio. A puberdade era um campo de minas e o pecado, um brinquedo com espinhos. As implicações de ser apanhado a afagar a cobra zarolha pelos pais eram tremendas no século XVIII. Castigos, sermões, reclusão em colégios onde se aprendia latim e vergonha e, pior, eufemismos burgueses. O prazer era condenado para bem da civilização. E ali, ao lado dos ratos e das orações, a sexualidade crescia disforme, faminta, selvagem. O desejo, quanto mais reprimido, mais musculoso se tornava. Era um cão fechado num sótão a roer a porta da moral.
Ser médico nesses tempos era a coisa mais fácil do mundo: era recuar com o auxílio do doente até o episódio onde a mão lhe fugira marotamente para as províncias acesas.
Diagnóstico simples: se estás triste, foi porque tocaste onde não devias. Se tosses, se sonhas, se te apaixonas, culpa tua — deixaste escapar um jacto de essência viril, perdeste luz liquefeita. Tratamento? Castidade, banhos frios e leitura das epístolas de Paulo, e visionamento de freiras à distância. E um pouco de sangria, só para equilibrar os humores.
No princípio, era a masturbação. Ei-la, a marotice-mor, a masturbação, o epicentro do inferno, causava cegueira, meningite, doenças nos ossos, o rol é quase infinito.
E talvez tenham razão. Masturbação causa cegueira — da inocência. Depois da primeira, nunca mais se vê o mundo como antes. Os objetos ganham novas funções, os travesseiros ganham textura de pele, os dedos tornam-se instrumentos de linguagem. É o primeiro poema escrito com o corpo.
A punheta, naqueles tempos, era um jogo de tudo ou nada.
Era rebelar-se contra Deus, contra o padre, contra o doutor e contra a avó que fazia chá de camomila para acalmar o demónio entre as pernas. Cada punheta era um protesto, uma barricada feita com lençóis húmidos. E como toda revolução, era solitária, ruidosa e mal compreendida.
Os habitantes deste século são os privilegiados da masturbação. O caminho foi longo mas valeu a pena, no fim gozamos todos, cada um no seu dialecto de gemidos e roncos.
Uns ronronam, outros rugem, outros calam. Há quem goze como quem reza. A variedade sonora é uma fauna por catalogar. Hoje, a masturbação é tão comum que já nem espanta. Mas ainda há quem se esconda — porque o prazer, apesar de livre, continua a carregar os restos de uma culpa imorredoira.
Porra, eu não mereço isto, pensa o bardo entre dois versos, não ganho para a côdea, vendi a farpela de pardal de molde a poder editar o livrito numa edição de autor entre aspas.
Entre aspas, sim, porque já nem se sabe o que é o autor. Qualquer um com uma conta no Instagram e um poema sobre ansiedade já se proclama cronista da alma. O bardo, coitado, ainda tentava escrever com os cotovelos ensanguentados na mesa da sua vidinha aflita, mas o mundo só lhe respondia com intrujice telefónica. A sua poesia não era instagramável. Tinha cheiro. Tinha mofo. Tinha fúria.
...foram-se os banquetes e os Neros, os Bacos e os Petrónios, ficaram os incêndios...
Os convivas morreram ou viraram opinion makers. Ninguém mais se embebeda pela obra, só pela fotografia. O vinho já não inspira: patrocina. Os Neros mandam chamas digitais às bem apetrechadas de carnes. Os Petrónios abrem newsletters em vez de veias. O bardo, entre escombros e recibos verdes, percebeu que a única coisa que restava ao artista seria dançar à beira do abismo com uma faca nos dentes.
...eu que sempre fui sério de contas, noves fora nada, pronto, estou gasto, doravante só lá vou com citações...
Começou a colecionar frases como quem coleciona escudos contra a estupidez. Cada citação, uma pausa no suicídio. Metia Camus no bolso, Cioran na gola, Valéry nos sapatos. Citava para não gritar. Citava porque escrever do zero já não fazia eco — e assim enturmava-se com os espíritos dos papagaios.
...pronto, lá vou eu, animal sem nome em itálico, aborrecer os paleontólogos quando descobrirem que fossilizei numa cadeira à espera do futuro.
O esqueleto do poeta será exibido num museu do tédio, entre a máquina de escrever de um cronista do século XXI e um iPad partido com o rascunho de um poema nunca publicado. A legenda dirá: “Último espécime de homo líricus. Morreu à espera de um editor.”
Mais um besouro de patas para o ar.
Outro cadáver sem luto. A entomologia da desesperança vai aumentando a cada dia. O besouro é símbolo, é metáfora, é aviso. E ninguém ouve. Talvez este seja o destino da escrita: ser notada demasiado tarde, quando já cheira a fim.
Estou aqui, filho, entre metáforas, a fazer festinhas a uma greguería.
Sim, porque o poeta é esse tipo que acaricia o ridículo com doçura. As greguerías — pequenas explosões de sentido — são as migalhas de um banquete de palavras que nunca chegou a ser servido. O poeta esfola o símbolo, dá-lhe colo, depois manda-o para casa com um pontapé no cu. A metáfora, às vezes, é o único filho que sobrevive.
...sou desenrascado ou enfrascado entre assonâncias...
O som salva, quando o sentido desiste. A assonância é o que sobra quando a gramática implora misericórdia. Rimas pobres, ecos desdentados, harmonias mendigas — tudo serve para dar à língua um lugar onde cair morta. Que ninguém diga que este texto não tem música. Tem, mas é um fado a pique cantado por um cão sem dono.
...façam-me um favor, vão à janela fazer adeus às pontes para lado nenhum...
Estas pontes não levam a lado algum — servem apenas para que alguém, num momento de lucidez ou vertigem, pense em saltar. Não nos tirem a possibilidade de viajar.
...vejam-me a rir satanicamente entre os maus, com dinamite entre os dentes, que se foda a rosa, não há tempo para tangos.
Ai que valente que o político é, a fazer peitinho à tragédia com um rosário de frases feitas.
Frases com cheiro a resina fresca, moldadas em gabinete por estagiários de comunicação social, engolidas a seco por homens de ordenado mínimo e gravata acima da média. A tragédia é um palco, e o político, um actor da pior espécie: acredita no seu próprio texto.
Não me queiram junto dos vossos ídolos, meus queridos, num repente detonaria o discurso positivo preso por arames. Esse discurso é um espantalho. Um amontoado de optimismo desdentado, colado com cuspe ideológico de vão-de-escada. Tudo o que dizem já foi dito em PowerPoint e em vídeos motivacionais com trilha genérica de piano por trás. O narrador, esse profeta maldito, não cabe nos vossos painéis. Não cabe nos vossos prémios literários. Não cabe, ponto.
...aqui está o vosso inimigo, em carne e osso e gordura.
E que se veja a gordura, sim, porque a magreza ideológica destes tempos é o verdadeiro flagelo. Um mundo que celebra corpos e ideias secas, onde a gordura virou insulto e a linguagem vive de dietas. O inimigo não é o terrorista, nem o vírus — é quem pensa de mais, fala de mais, pesa de mais. O obeso do espírito. O gordo das ideias, a parangona com cabeça, tronco e idioma.
Não me tentem capturar nas vossas palavras, eu transbordarei sempre dos vossos epítetos. Os epítetos são etiquetas para frascos empoeirados. E este texto, esta voz, esta fúria — tudo isto está vivo, vivo como um cão ferido que morde a mão que tenta consolá-lo. Nada aqui cabe num resumo. Nada se explica num parágrafo. Nada se resume sem mutilação. O poeta não é objeto — é maremoto.
Hei-de cuspir ácido nas vossas gaiolas.
E mesmo que me faltem os dentes, mesmo que me escaqueirem os ossos, mesmo que me empalhem numa biblioteca sem leitores, cuspirei. Porque cuspir é o último acto livre num mundo de abutres profissionais. Cuspir é dizer: “aqui tens o teu elogio; sou o teu maior fã”.
A razão por que me intrometo em todos os episódios, qual velha treinada nos boatos...
É porque ainda acredito que há histórias por estragar. Há narrativas limpas de meter nojo, bonitas até ao gargalo, costuradas com linha de seda. Entro nelas como quem risca a pintura de um crente. As versões oficiais dão-me comichão. Não confio em livros sem manchas de vinho.
...ai, ainda estás entre nós, pensei que havias morrido ou desaparecido...
Muitos pensaram. E desejaram. Mas estou vivo, sim — no osso e na ideia. Em ruínas, mas em pé. Apodrecido, mas empreendendo fífias no texto. A literatura nunca morre — ela fermenta. Há quem pense que desapareci porque não apareço nas listas de finalistas, nem nas partilhas de Instagram. Mas estou vivo em cada frase que não sabem como classificar.
...não, caro colega de marasmo, estive a agigantar-me em pipas de cólera, a fermentar a cabeça e a mão esquerda.
A mão esquerda, essa maldita. A que escreve o que a direita não ousa pensar. A que segura o copo, o cigarro, o batuta da insubordinação. A cabeça, por sua vez, fermenta como queijo com personalidade — exala ideias que ninguém quer mastigar. É por isso que os versos cheiram mal: são vivos.
Não quero passar o resto da vida como aquelas poetas que confundem poesia com inventários de ninharias.
Poetas de sacola de supermercado e apontamentos de floricultura. Os que confundem melancolia com secção de bricolage. Que se acham profundos por nomearem o outono a cada quatro versos. Poesia não é lista de coisas sentidas. É faca. É escarro. É incêndio. Mas também uma frase encorpada, use-se o papel até ao fim; e se o papel não chegar, use-se a mesa; caso a mesa não chegue, use-se o chão, caso o chão seja insuficiente, use-se o mundo todo, uma e outra vez.
Ai, vejam bem o demónio que lhe tomou conta das mãos, diz o exegeta cruzando Freud e restante pandilha que espreme a relação entre pai e filho em busca de um sentido para a vida.
Freud, o velho açougueiro do inconsciente, ainda hoje comanda exércitos de leitores que confundem complexos com calcanhares. O escritor espirra e já lhe querem diagnosticar o trauma. Mas o que há nas mãos deste bardo não é só pai — é vulcão, é fome, é um museu inteiro de desejos que não respeitam genealogia.
Olha-me o cabrão, comenta o especialista de rodapés despindo a língua de etiquetas, nunca desafiou o pai nem a autoridade e agora deu-lhe para marrar com os deuses na escrita. Marrar é obrigação. Marrar com tudo, com todos, mesmo com o espelho. Porque quem não escreve contra algo, escreve para ninguém.
Cada vez me convenço mais de que vivo naquele mundo povoado por mãos, elas que destronaram o homem, descrito por Herberto Helder no Photomaton & Vox.
As mãos, essas criaturas autónomas, já não obedecem ao corpo — fundaram a sua própria civilização. Escrevem, matam, tocam, mentem, digitam, enchem de dedadas os verbos. São as mãos que governam o século: não os olhos, não os corações. Olha-se para um ecrã, mas são os dedos que decidem o destino. Cada clique, cada deslizar, cada punho erguido ou punheta anónima: gestos sem alma, mas com consequências tectónicas. Herberto sabia — as mãos já não nos pertencem. Somos apenas os pulsos onde elas assentam.
Além das sobras dos trabalhos de Hércules, há a empreitada de fazer e desfazer o tédio sem morrer no processo.
Essa é a 13ª tarefa. A mais absurda, a mais humana. Hércules matou monstros, lavou estábulos, desceu ao inferno — tudo mais fácil do que acordar de madrugada a fim de ganhar para a côdea, abrir o e-mail, aguentar o trânsito das ideias repetidas e continuar a respirar como se nada fosse. Lidar com o tédio é o verdadeiro heroísmo contemporâneo: resistir sem banda sonora que nos enobreça, sem glória, sem aplauso.
(gritem) Sobra-nos atacar o muro das convenções à cabeçada e ao pontapé.
...e rezar para que o sangue faça brotar do muro um poema eterno capaz de rachar este casulo.
O poema verdadeiro não nasce da inspiração. Nasce da fratura.